quinta-feira, 5 de março de 2015

Memorial reúne vida e obra de João Batista Libanio, referência em Teologia da Libertação

Teologia da Libertação

Thiago Silveira
  Fonte: Adita.com.br
"Nada faz o ser humano ser tão feliz como colaborar no crescimento interior e espiritual das pessoas”. Depois de escrever mais de 125 livros, o padre jesuíta João Batista Libanio tinha mais do que propriedade para fazer ecoar essa frase. Vítima de um infarto aos 81 anos, em janeiro de 2014, o religioso conta agora com um espaço para manter vida sua memória.
Doutor em Teologia e reconhecido em todo o mundo pela dedicação aos estudos na área, em especial em Teologia da Libertação, e também por sua ação pastoral, Padre Libanio lecionou em diversas universidades do país, como a Universidade do Vale do Rio dos Sinos, em São Leopoldo, Estado do Rio Grande do Sul, e no Instituto Teológico da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-Minas). Antes de falecer, ele lecionava Teologia na Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (FAJE), em Belo Horizonte (Minas Gerais).
Com o objetivo de fazer com que a vida e a obra de Libanio possam ser conhecidas e consultadas por outras pessoas que não conviveram com ele e não tiveram ainda acesso aos seus escritos, a FAJE criou um espaço virtual que reúne extenso materiais sobre o estudioso.

O padre jesuíta J.B. Libanio escreveu ao mais de 125 livros ao longo da sua trajetória.
"Na verdade, fizemos um site que disponibiliza informações sobre o Padre Libanio: biografia, bibliografia (completa), homilias, recensões e artigos publicados na Perspectiva Teológica e na Síntese, alguns cursos que estavam disponíveis no Youtube”. conta o professor Geraldo De Mori, responsável pelo memorial.
A instituição pretende também criar um espaço físico do Memorial. "Provavelmente, no decorrer de 2015, serão dados os primeiros passos nesse sentido, mas não temos ainda previsão de quando será inaugurado. Esse trabalho depende de muita atenção, tempo e pessoas disponíveis para fazerem a triagem e a catalogação”, observa De Mori.
Para o professor, Libanio tinha uma capacidade de leitura, de síntese, de sistematização e de criação original muito grande, por isso, "seus cursos e livros retomavam as principais correntes teológicas do mundo, de forma original, inteligente e criativa”. "Além de professor e escritor, Libanio atuou como assessor e conferencista, exercendo influência importante em vários âmbitos e instituições eclesiais e não eclesiais no Brasil. Sua presença nos intereclesiais, em assembleias diversas da CRB [Conferência de Religiosos do Brasil] e de várias congregações e dioceses são exemplos da sua presença na vida concreta da igreja no país”.

sábado, 17 de janeiro de 2015

Jesus, aproximação histórica

 por José Antonio Pagola. Vozes, Petrópolis, 1 vol. Br., 160 x 230 mm, 651 p. – ISBN 978-85-326-4017-8
Fonte: fteixeira-dialogos.blogspot.com.br

Trata-se de uma excelente novidade editorial da Vozes. Refere-se à nona edição de um livro que vem se tornando bestseller na Espanha, com traduções ao Catalão (Claret), Euskera (Idatz), Italiano (Borla) e Inglês (Paperback). A primeira edição do livro foi publicada na Espanha em setembro de 2007 pela editora PPC (dos religiosos marianistas) e logo alcançou grande sucesso, chegando à oitava edição em fevereiro de 2008. Foi uma acolhida “muito mais ampla e positiva” que a esperada pelo próprio autor, José Antonio Pagola, com formação em teologia e ciências bíblicas pela Pontifícia Universidade Gregoriana, Pontifício Instituto Bíblico de Roma e Escola Bíblica e Arqueológica Francesa de Jerusalém. A obra provocou igualmente criticas negativas e reações do episcopado espanhol. A primeira delas partiu de Mons. Demetrio Fernández, bispo de Tarazona, que em carta pastoral de dezembro de 2007 assinalou que a “tentação ariana” assoma a obra em seu conjunto. Veio em seguida a apreciação crítica de José Rico Pavés, diretor do Secretariado Episcopal para a Doutrina da Fé da Conferência Episcopal Espanhola (CEE), que sinaliza o risco de um “dissenso sutil e daninho” na investigação histórica realizada por Pagola sobre o ensinamento de Jesus. Todas as reações culminaram na nota de clarificação sobre o livro feita pela Comissão Episcopal para a Doutrina da Fé da CEE, publicada em junho de 2008, que apontou deficiências da obra tanto no plano metodológico como doutrinal. A preocupação maior relacionava-se ao que consideravam uma “apresentação reducionista de Jesus como um mero profeta” e a “negação de sua consciência filial divina”, além de outras questões conexas.
Em defesa da obra posicionou-se o então bispo da diocese de San Sebastián, Juan Maria Uriarte. Ali atuava Pagola como vigário episcopal até o ano 2000 e permanecia atuando como diretor do Instituto de Teologia e Pastoral. Diante da situação crítica, Uriarte solicita a dois qualificados teólogos e a um bispo teólogo a avaliação da obra. Com a sugestão de algumas modificações, a obra ganha o Nihil Obstat de Uriarte e chega assim à sua nona edição, em junho de 2009. É essa versão que sai agora publicada em português. Dentre as mudanças observadas, verifica-se que esta nona edição ganhou uma apresentação mais detalhada e uma significativa ampliação do capítulo final, que trata o tema do aprofundamento da identidade de Jesus.
Na apresentação da obra, Pagola apresenta as razões de sua investigação histórica sobre Jesus. Sua motivação maior é captar o segredo que “se encontra neste fascinante galileu, nascido há dois mil anos numa aldeia insignificante do Império romano e executado como um malfeitor perto de uma antiga pedreira, nos arredores de Jerusalém, quando beirava os 30 anos” (p.11). Lança a questão: “Quem foi este homem que marcou decisivamente a religião, a cultura e a arte do Ocidente chegando até a impor inclusive seu calendário?”(p.11). O objetivo do autor é lançar-se numa séria investigação, a mais rigorosa possível, sobre essa figura fascinante: sobre sua vida, suas lutas e a força e originalidade de sua atuação na história. Para tal aproximação histórica, o autor fez recurso ao rico instrumental à disposição na investigação moderna, e sempre em perspectiva interdisciplinar. Buscou igualmente apresentar seu trabalho numa linguagem simples e acessível, o que muito favorece sua leitura que é agradável e convidativa. Sente-se nessa nova apresentação uma preocupação do autor em explicitar sua intenção de concentrar-se na investigação histórica sobre Jesus, o que não significa abafar o vigor de sua confissão cristã que afirma Jesus como “verdadeiro Deus e verdadeiro homem” (p. 15). Indica claramente que seu propósito não é avançar pelos “complexos caminhos da gestação e desenvolvimento da fé cristológica” (p. 26 e p. 363, n. 2).
Como assinala Pagola, o livro nasceu de sua fé e amor a Jesus Cristo, e estimulado por essa mesma fé buscou narrar a história de Jesus de forma viva e significativa para os tempos atuais. Direciona o livro não apenas para os que se confessam cristãos, mas também para aqueles que ignoram sua realidade ou aqueles que se afastaram ou desencantaram com a igreja e buscam caminhos alternativos de vida (p. 26- 27). Sua intenção é favorecer a aproximação histórica de Jesus “estudando sobretudo a lembrança que ele deixou nos seus” (p.19). E esta aproximação é contagiante: “É difícil aproximar-se dele e não sentir-se atraído por sua pessoa. Jesus traz um horizonte diferente para a vida, uma dimensão mais profunda, uma verdade mais essencial” (p. 22).
Os treze primeiros capítulos da obra buscam favorecer essa aproximação histórica de Jesus, mediante seus traços mais importantes. Tais capítulos facultam aos cristãos conhecer de forma mais palpável os traços humanos daquele em quem Deus revelou-se de modo único e singular: “comover-se-ão ao ver que Deus encarnado conviveu entre os homens fazendo o bem, ´curando a vida`, ´defendendo os últimos`, ´amando a mulher`e procurando a verdadeira dignidade” (p. 24). E aos demais, a possibilidade de “conhecer melhor um homem que marcou a história da humanidade” (p. 23).
Nos dois primeiros capítulos Pagola busca situar Jesus em seu contexto histórico, enquanto judeu da Galiléia e vizinho de Nazaré. Foi sob o império de Roma que viveu esse galileu de nome Yeshua, entre pessoas do campo e num ambiente de viva presença religiosa. Ele “cresceu no meio da natureza, com os olhos muito abertos para o mundo que o rodeava” (p.64), e isso se expressa na abundância de imagens que emprega em sua fala, adornada com elementos de seu espaço circundante: os pássaros do céu, as anêmonas das colinas de Nazaré, as ramas das figueiras, a beleza do sol e a força das chuvas. O seu estilo de vida difere dos ascetas do deserto, pois vem marcado pela vontade de vida e pelo toque festivo. A sua experiência de fé foi desdobrando-se de sua vida simples na Galileia, no clima religioso propício de sua aldeia. Ali foi percebendo que “Deus é o ´Pai do céu`. Não está ligado a um lugar sagrado. Não pertence a um povo ou a uma raça concretos. Não é propriedade de nenhuma religião. Deus é de todos” (p. 73-74). Ali cresceu apaixonadamente em seu coração o amor pelo reino de Deus, que se tornará a razão central de sua vida e atuação (p. 83).
 Nos capítulos terceiro e quarto, apresenta Jesus como buscador de Deus e profeta do reino de Deus. Assim como o profeta João Batista, que o precede, Jesus busca captar a vontade de Deus, mas sua perspectiva é distinta. Seu estilo de vida é festivo, marcado pelo tônus da alegria. Vai dedicar-se “a algo que João nunca fez: curar os enfermos que ninguém curava, aliviar a dor de pessoas abandonadas, tocar leprosos que ninguém tocava, abençoar e abraçar crianças.” (p. 106). Enquanto a missão do Batista estava vinculada à questão do pecado, o projeto de Jesus tinha como objetivo aplacar o sofrimento dos mais excluídos e necessitados, anunciando-lhes uma Boa Notícia: “É mais determinante em sua atuação  eliminar o sofrimento do que denunciar os diversos pecados das pessoas” (p. 213). No cerne de sua atuação encontra-se a “paixão pelo reino de Deus”. Trata-se do núcleo medular de sua pregação, da convicção mais profunda que o anima e o segredo de sua motivação existencial. E essa mensagem do reino volta-se privilegiadamente para os pobres. Jesus declara-os felizes porque Deus é amigo da vida e quer fazer do seu reino uma manifestação da compaixão de Deus que rompe com a situação de miséria e opressão e anuncia uma perspectiva nova de esperança e alegria (p. 130-131). Esta é a razão do impacto exercido pela mensagem de Jesus desde o início: “Aquela maneira de falar de Deus provoca entusiasmo nos setores mais simples (...). Era o que eles precisavam ouvir: Deus se preocupa com eles. O reino de Deus que Jesus proclama corresponde ao que eles mais desejam: viver com dignidade” (p. 124). Esse reino que vem, longe de ser uma expressão de poderio ou glória, é a manifestação efetiva da bondade e compaixão de Deus, que removem as entranhas.
Nos capítulos quinto e sexto, aparece Jesus como o poeta da compaixão e curador da vida. É à linguagem dos poetas que Jesus recorre para expressar a sua experiência e compreensão do reino de Deus. São ricas as imagens, metáforas e parábolas que utiliza para traduzir de forma simples, clara e acessível o seu projeto de vida. O que anuncia é um Deus compassivo, inigualável metáfora para expressar o seu mistério de vida. E o autor indaga: “Será esta a melhor metáfora de Deus: um pai acolhendo de braços abertos os que andam ´perdidos` fora de casa e suplicando a todos os que o contemplam e ouvem que acolham com compaixão a todos?” (p. 164). Com base na parábola do bom samaritano, Pagola sinaliza que “a melhor metáfora de Deus é a compaixão para com um ferido”, e que o reino de Deus acontece onde quer que “as pessoas atuam com misericórdia” (p. 174). Jesus é também curador da vida: alguém que contagia saúde e vida, e junto a ele não há lugar para a tristeza ou solidão. A acolhida e o cuidado são traços singulares de sua atuação. Na base dessa força curadora está a dinâmica de sua própria pessoa: “seu amor apaixonado à vida, sua acolhida afetuosa a cada enfermo ou enferma, sua força para regenerar a pessoa a partir de suas raízes, sua capacidade de transmitir sua fé na bondade de Deus. Seu poder de despertar energias desconhecidas no ser humano criava as condições que tornavam possível a recuperação da saúde” (p. 202).
Os traços de Jesus como defensor dos últimos e amigo da mulher aparecem nos capítulos sétimo e oitavo. A Boa Notícia do reino de Deus toca de modo particular os mais sofridos e pequeninos. Essa é a grande revolução trazida por Jesus, inaugurando a centralidade do “código da compaixão”. Com base na parábola do juízo final (Mt 25,31-46), Pagola indica que “o caminho que conduz a Deus não passa necessariamente pela religião, pelo culto ou pela confissão de fé, mas pela compaixão com os ´irmãos pequenos`”. Conclui dizendo que “a religião não detém o monopólio da salvação; o caminho mais acertado é a ajuda ao necessitado. Por ele caminham muitos homens e mulheres que não conhecem Jesus” (p. 235). Em seu livro, Pagola confere um importante lugar para as mulheres  no movimento de Jesus. Foram verdadeiras “discípulas de Jesus”, estando presentes e atuantes desde a Galileia até Jerusalém. Elas “fizeram parte do grupo que seguia Jesus desde o início”. Algumas são nomeadas, como Maria de Mágdala, que ocupa um lugar de destaque, sendo sua melhor amiga (p. 280-281). O autor assinala a presença delas na última ceia e o seu lugar protagônico na fé pascal (p. 276-277).
Nos três capítulos seguintes, nono, décimo e décimo primeiro, abordam-se os temas de Jesus como mestre de vida, criador de um movimento renovador e crente fiel. Jesus foi um “mestre pouco convencional”. Para ele não é a lei que está no centro, mas o amor. Em sintonia com toda a reflexão anterior, Pagola indica que o reino de Deus anunciado por Jesus exige, antes de tudo, fidelidade ao Deus da Vida e da Aliança. O importante “não é contar com pessoas observantes da leis, mas com filhos e filhas que se pareçam com Deus e procurem ser bons como ele o é” (p. 299). O que Jesus criou, de fato, foi um “movimento renovador”, um “movimento de homens e mulheres saídos do povo” que, em sua companhia, firmam a “consciência da proximidade salvadora de Deus” (p. 323). Seus seguidores são chamados a “compartilhar sua paixão por Deus e sua disponibilidade ao serviço de seu reino” (p. 340). Na edição anterior do livro havia uma passagem que foi retirada na nova edição e que dizia “que Jesus não pôde nem quis colocar em marcha uma instituição forte e organizada, mas um movimento curador que foi transformando o mundo numa atitude de serviço e amor. Não há como explicar a atuação profética de Jesus sem captar o mistério de sua relação amorosa com Deus. ”. É Deus que está no centro de sua vida.  Para Jesus, Deus não se reduz a uma teoria, mas é uma Presença que o transforma interiormente e faculta a tonalidade de sua vida de abertura e compromisso com os outros. A Deus, como Pai, dedica sua oração nos momentos cruciais de sua caminhada. Jesus sempre se dirige a Deus como “Pai”, com quem partilha confiança e intimidade (p. 383 e 392). É o Pai do céu, que “não está ligado ao templo de Jerusalém nem a nenhum outro lugar sagrado. É o Pai de todos, sem discriminação nem exclusão alguma. Não pertence a um povo privilegiado. Não é propriedade de uma religião. Todos podem invocá-lo como Pai” (p. 392). O mistério de Deus é vivido por Jesus de forma peculiar: nele encontra o “melhor amigo do ser humano” e o “amigo da vida”. Estabelece também com ele uma peculiar “intimidade filial”. Uma das “deficiências” indicadas pela crítica da CEE contra o livro de Pagola foi a carência de uma explicitação da consciência filial divina de Jesus. O que o autor sublinha em seu livro, em sintonia com o seu propósito de se fixar no âmbito da investigação histórica, é que “Jesus mostra-se muito discreto sobre sua vida interior” (p. 363). Retoma a questão mais adiante assinalando que “ao que parece, Jesus nunca se pronunciou abertamente sobre sua pessoa. A questão de sua messianidade respondia de forma ambígua” (p. 452). Na edição anterior tinha sido mais contundente: “Em nenhum momento manifesta pretensão alguma de ser Deus: nem Jesus nem seus seguidores em vida utilizaram o titulo de ´Filho de Deus` para confessar sua condição divina”.
Nos capítulos doze, treze e quatorze o autor desenvolve os temas da morte e ressurreição de Jesus. Pagola indica em sua obra que o final trágico encontrado por Jesus foi resultado de sua vida e luta em favor do reino de Deus: “Não foi uma surpresa. Fora sendo gestado desde que ele começou a anunciar com paixão o projeto de Deus que ele trazia no coração” (p. 399). Foi alguém “coerente até o final”, um “mártir do reino de Deus”. Segundo Pagola, a investigação histórica indica que a morte de Jesus não pode ser interpretada numa perspectiva sacrificial. Na verdade, “nunca se vê Jesus oferecendo sua vida como uma imolação ao Pai para obter dele clemência para o mundo. O Pai não precisa que ninguém seja destruído em sua honra. O amor que ele tem por seus filhos é gratuito, seu perdão é incondicional” (p. 419). Essa posição do autor também causou dificuldade para seus opositores. Na apresentação de sua obra, Pagola sinaliza que não quis concluir o seu livro com a perspectiva da cruz. Argumenta que “não quis deixar os leitores confusos diante de um Jesus executado cruelmente num patíbulo. Nem tudo terminou ali. Se a crucifixão tivesse sido a última lembrança que restou de Jesus, não teriam escrito os evangelhos nem teria nascido a Igreja” (p.24). Daí a centralidade da ressureição em sua obra, mas o autor sublinha que sua abordagem do tema foi marcada pela fidelidade ao rastreamento histórico das fontes (p. 25). Na linha dessa abordagem, a ressurreição não significou um retorno de Jesus “à sua vida anterior na terra” (p. 495). Nao foi, propriamente, um “fato histórico” constatável e verificável, mas um “fato real”, que habitou e marcou a vida de seus discípulos, e para os que crêem, um fato decisivo na história humana (p. 497). Trata-se de um “fato real” pois a fé dos seguidores de Jesus não se fundou num vazio. De fato, “algo aconteceu neles. Todas as fontes o afirmam: viveram um processo que não só reavivou a fé que tinham em Jesus, mas os abriu para uma experiência nova e inesperada de sua presença entre eles” (p. 499).
No último capitulo, Pagola desenvolve o tema da identidade de Jesus. Seguindo o critério estabelecido por James Dunn, segundo o qual o objetivo realista de uma pesquisa histórica sobre Jesus é o “Jesus recordado”, o autor vai traçar as repercussões do impacto da ressurreição nos seguidores mais próximos de Jesus. Sob o impacto desse “fato real”, é toda uma releitura da vida e significado de Jesus que vem processada: “Aquela vida surpreendente e cativante que conheceram de perto e cuja memória guardam viva no coração adquire agora uma profundidade nova”. Pagola defende, assim, a idéia de que a “lembrança” traduz o “ponto de partida da fé cristológica” (p. 528).
No epílogo da obra, Pagola adverte sobre a importância de situar Jesus no centro do cristianismo, mas evitando “reduzir sua pessoa a uma sublime abstração” (p. 566). Driblando um dos riscos mais ameaçadores para o cristianismo atual, que é o monofisismo, o autor busca sublinhar os traços do Jesus profeta que percorreu com coragem os caminhos da Galileia. Nada mais problemático para o cristianismo do que um Jesus sem reino e Pagola está muito atento a isto. É para o reino que Jesus vive, é ele que motiva a sua paixão e dá significado à sua vida. Assinala com precisão que “o que ocupa o lugar central na vida de Jesus não é Deus simplesmente, mas Deus com seu projeto sobre a história humana. Jesus não fala de Deus simplesmente, e sim de Deus e seu reino de paz, compaixão e justiça” (p. 568). São lindas reflexões que trazem à tona o percurso reflexivo original da cristologia da libertação latino-americana. O tema do seguimento de Jesus entra no final, coroando com êxito a reflexão de Pagola. O que Jesus deixou atrás de si foi o projeto de dar continuidade ao seu sonho de fraternidade. Não “pensou numa instituição dedicada a garantir no mundo a verdadeira religião. Jesus pôs em marcha um movimento de ´seguidores` que se encarregassem de anunciar e promover seu projeto do ´reino de Deus` (...). Por isso, não há nada mais decisivo para nós do que reativar sempre de novo, dentro da Igreja, o seguimento fiel à pessoa de Jesus” (p. 569).
Não há como ler este livro de Pagola sem se emocionar. Através do recurso de uma linguagem simples mas rigorosa consegue com felicidade apresentar o itinerário histórico de Jesus e provocar as entranhas de compaixão. É uma obra grandiosa e vai, certamente, deixar rastros importantes na reflexão sobre Jesus Cristo e a dinâmica de seu seguimento na história. Muito acertada e pertinente a decisão da editora Vozes em facultar o seu acesso aos leitores brasileiros.

(Publicado na REB, v. 70, n. 280, outubro 2010, pp. 974-978)

domingo, 8 de junho de 2014

A moral do prazer e o imaginário “consumista” contemporâneos

Por Jurandir Freire Costa*
Fonte: http://vidapastoral.com.br/artigos/atualidade/a-moral-do-prazer-e-o-imaginario-consumista-contemporaneos/
A tendência da cultura atual de trocar o prazer dos ideais e sentimentos elevados pelos prazeres sensoriais é o principal trunfo do imaginário consumista. As pessoas passam a depender cada vez mais da diversidade e da constância dos objetos para ter prazer, os quais, uma vez adquiridos, já portam o signo da obsolescência e perdem o potencial de estímulo.
 1. Imaginação e desejo “consumistas”
Vou abordar o tema proposto no que tem de mais próximo da disciplina a que me dedico: subjetividade e cultura. Nesse sentido, a primeira observação a ser feita é que a concepção de sociedade regida pela economia de mercado é tão imaginária quanto qualquer outra do gênero. Dizer que uma concepção é imaginária não significa dizer que ela é impotente para alterar a realidade. Ao contrário, boa parte do que condiciona os ideais de vida e as condutas cotidianas é crença imaginária. Imaginário não é sinônimo de “ilusório”, mas do que não tem existência independente da imaginação. Ou seja, diferentemente das coisas materiais, que independem dos desejos e aspirações humanos para existir, as crenças culturais são produtos de nosso modo de agir e dar sentido a nossas ações.
Assim, a sociedade de mercado, como qualquer artefato cultural, depende das atitudes e disposições psicológicas dos indivíduos para agir e pensar “como se ela existisse”. As disposições e atitudes que contribuem para a reprodução da sociedade de mercado atual são, em linhas gerais, as seguintes: o sujeito 1) deve se deixar seduzir pela propaganda de mercadorias; 2) deve possuir uma identidade pessoal flexível, compatível com as novas relações de trabalho; 3) deve estar convertido à moral das sensações, ou seja, ter pretensões a satisfação em curto prazo, em detrimento de satisfações que exigem projetos de longo alcance.
As três características são indicativas da maneira como estamos nos relacionando a) com o mundo dos objetos, b) com nossa história pessoal e c) com nosso corpo. Analisemos cada uma em particular. Tomemos a primeira, a relação com os objetos. Para que o mercado funcione é preciso que o sujeito esteja sempre disposto a adquirir os novos produtos criados pela indústria. A isso se costuma chamar “consumismo”. A palavra consumismo, entretanto, é inadequada para designar o hábito econômico ao qual se refere por dois principais motivos: primeiro, por nos fazer crer que consumimos coisas que, de fato, compramos; segundo, por dar a entender que somos todos iguais diante da possibilidade de comprar mercadorias produzidas e vendidas em larga escala.
Na verdade, as únicas coisas que consumimos são substâncias metabolizáveis como alimentos, fármacos etc. Por conseguinte, ao empregar a palavra consumir, querendo ou não, estamos salientando nossa condição de organismos físicos naturais. Desse ponto de vista, obviamente, somos todos razoavelmente iguais, dado que nossas necessidades biológicas são razoavelmente idênticas. Entretanto, se olhamos o consumo como equivalente a poder de comprar, não é isso que acontece. Comprar não é uma ação regida por necessidades biológicas, mas um ato com implicações sociais. Diante de atos desse tipo somos todos diferentes e desiguais.
Adquirir mercadorias por meio de compra já define “quem é quem” no universo social. A maior parte da população tem um poder de compra extremamente reduzido e alguns, para possuir o que desejam, roubam ou furtam. Os chamados objetos de consumo, dessa forma, nem são consumíveis nem estão igualmente disponíveis para todos os indivíduos. A produção de objetos é seletivamente organizada de maneira a ser seletivamente distribuída pelos que têm muito dinheiro, pouco dinheiro ou nenhum dinheiro.
Os dois primeiros grupos, os dos compradores, estão incluídos na sociedade e, por isso mesmo, são os defensores e propagandistas da ideia de mercado como uma realidade independente dos hábitos individuais; o terceiro, formado pelos excluídos da economia e da sociedade, é diretamente estimulado a possuir o que não pode comprar e indiretamente incitado a se apropriar de forma criminosa do que é levado a desejar. Consumismo, portanto, é o modo que o imaginário econômico encontrou de se legitimar culturalmente, apresentando as mercadorias como objetos de necessidades supostamente universais e pré-culturais, e ocultando, por esse meio, as desigualdades econômico-sociais entre os potenciais compradores.
Pode-se perguntar, porém: por que as pessoas se deixam convencer por crenças racionalmente inconsistentes, quando não disparatadas? A resposta usual aponta para a influência da publicidade e da moda. A publicidade e a moda, diz-se, criam “desejos artificiais”, que, pela repetição e pela sedução, são integrados ao repertório de aspirações dos sujeitos. Há algo de verdadeiro nessa afirmação. Mas não da forma como é entendida de modo corrente. Em primeiro lugar, não é verdade que nos comportamos como compradores sonâmbulos, manipulados pelo “eixo do mal” da publicidade e da moda. Essa imagem pejorativa dos sujeitos não se sustenta em nenhum argumento empírico ou teórico. As pessoas, em geral, sabem o que estão fazendo ao sair de casa para comprar objetos em supermercados, lojas, butiques ou centros de compra. Ao comprar, estão adquirindo o que julgam importante possuir, por uma ou outra razão. Se essas razões são moralmente reprováveis por muitos, esse é outro problema. O que não se pode mostrar é que o hábito de comprar produtos industriais seja uma “compulsão” irracional por possuir “coisas supérfluas”. Se assim fosse, nossa sociedade teria se transformado em um imenso consultório psicológico-psiquiátrico, o que é manifestamente inverossímil. Em segundo lugar, nem tudo que compramos nos foi apresentado pela publicidade. As drogas ilegais são um exemplo gritante de objetos industriais consumidos em grandes proporções que têm sua venda e sua publicidade juridicamente proibidas. Em terceiro lugar, mesmo admitindo que a moda pudesse nos obrigar a fazer coisas das quais não estamos conscientes, ainda restaria explicar por que acreditamos que “comprar” é o mesmo que “consumir”.
Esse é o ponto que pretendo explorar. Por que nos deixamos convencer de que somos consumidores, a ponto de criar códigos de defesa específicos e a assumir alegremente tal identidade social? A explicação padrão para esse fenômeno diz o seguinte: comprar se tornou equivalente a consumir porque o ritmo de produção das mercadorias nos obriga a descartá-las depois de um breve uso. Consumo é uma metáfora que alude à rapidez com que adquirimos novos objetos e inutilizamos os velhos. Ou seja, tratamos os objetos industriais como tratamos substâncias que se prestam à reprodução dos ciclos biológicos, donde a assimilação do ato de comprar ao de consumir.
A explicação elucida o “quê”, mas não o “porquê”. Entendemos o sentido metafórico da palavra consumo aplicado ao ato de comprar, mas não as causas do hábito que o tornam inteligível. Por que os sujeitos adotam atitudes consumistas se podiam se conduzir de modo diferente? A resposta usual é, nesse caso, decepcionante: por causa da moda! A moda, no entanto, não é um fenômeno moderno. Moda e propaganda existem desde o início do capitalismo industrial. A réplica a isso é que a produção em larga escala ainda não existia. Depois das grandes revoluções tecnológicas e econômicas, a produção capitalista, para ser escoada, teve e tem de ser vendida em um fluxo contínuo. Os indivíduos, portanto, têm de comprar as mercadorias para que a máquina do lucro não pare. Entretanto, o que significa a expressão “ter de comprar”? Não conhecemos, no Ocidente capitalista, casos de pessoas arrastadas à força para adquirir objetos industriais. É claro que não, pode-se argumentar contra! Os consumidores não são fisicamente forçados a comprar o que não desejam, são “seduzidos” pela propaganda comercial!
Voltamos ao ponto zero. O que determina a força do apelo consumista é o fato de os indivíduos se deixarem seduzir pela propaganda de mercadorias. Mas por que eles se deixam seduzir? Por que se deixam converter à prática econômica que trata os objetos como coisas descartáveis? Para avançar na compreensão da questão, é preciso aprofundar as características psicológicas dos sujeitos que são o motor do imaginário do mercado e do consumo.
Sugiro que os indivíduos se deixam seduzir pelo consumismo porque esse hábito atende a reais necessidades psicossociais. Essas necessidades derivam, entre outros fatores, da nova moral do trabalho e da nova moral do prazer. Dito de outro modo, a publicidade não é onipotente. Os indivíduos não são fantoches manipulados pela propaganda, como se costuma pensar. Se grande parte deles se deixa persuadir pela propaganda é porque, em certa medida, encontra na posse dos objetos industriais um meio de realização pessoal. Essa aspiração à realização é o motivo do anseio pelos objetos ditos de consumo. Vejamos, assim, como as morais do trabalho e do prazer contribuem para a produção do desejo de consumir.
 2. Indivíduos desenraizados e demanda por novos produtos
Observemos, inicialmente, a nova moral do trabalho. As mudanças nas relações de trabalho foram bem estudadas por Richard Sennett em A corrosão do caráter (Rio de Janeiro, Record, 1999). Segundo o autor, as transformações econômicas das três últimas décadas alteraram a tradicional imagem do “trabalhador”. Os indivíduos, afetados pela competição crescente por empregos inseguros, começaram a adaptar suas condutas psicológicas ao perfil social do “vencedor”. O “vencedor” deve ser maleável, criativo, afirmativo e, sobretudo, superficial nos contatos pessoais e indiferente a projetos de vida duradouros. Para ganhar mobilidade no volátil mundo do emprego, ele deve aprender a não ter elos sólidos com família, lugares, tradições culturais, antigas habilidades e, por último, com o próprio percurso biográfico. Sennett define essa nova identidade como a do indivíduo “desenraizado” e Zygmunt Bauman, em O mal-estar da pós-modernidade (Rio de Janeiro, Record, 1998), como a do “turista”. O turista ou o desenraizado é o indivíduo que não se fixa em identidades passadas, que vê o mundo como um espaço de circulação permanente e que jamais projeta o futuro a partir das condições de vida presentes. Esse é um dos principais motivos pelos quais o desejo de possuir objetos industriais se acentuou. Os objetos passaram a ser aquilo que o turista pode ter, ao mesmo tempo, de mais estável e mais mutável. De mais estável porque são as únicas coisas que o sujeito transporta consigo onde estiver e para onde for, de mais mutável por serem facilmente trocáveis se a nova condição social de trabalho assim exigir. Em outros termos, a posse de mercadorias permitiu ao indivíduo preservar a necessidade psicológica de estabilidade sem renunciar à elasticidade pessoal exigida pelo mundo dos negócios.
Além disso, os objetos continuaram sendo o que sempre foram desde que surgiram no cenário da economia capitalista, ou seja, a marca do sucesso profissional e social. A aparência do sujeito afluente é determinada pela maneira como se veste, pela qualidade dos objetos de adorno pessoal, pelo tipo de automóvel, de artigos eletroeletrônicos e de objetos de decoração doméstica que possui, pelos restaurantes que frequenta e tipos de esporte que pratica, pelos lugares onde desfruta o lazer, pelas viagens que faz etc. Os objetos de consumo “agregam” valor social aos seus portadores. Eles são o crachá que identifica “o turista vencedor” em qualquer lugar, situação ou momento de vida.
O consumo de objetos, portanto, não se impõe apenas pela invasão da moda publicitária nas vidas pessoais. O aparato de objetos caros e elegantes é o signo, por excelência, da distinção social de seus possuidores. Por isso passaram a fazer parte da identidade pessoal dos mais abastados e, por extensão, da imensa maioria da sociedade. É entendível, assim, que a compra incessante de novos produtos se torne uma “demanda imaginária” tão coercitiva quanto qualquer “necessidade biológica”. Afinal, ninguém se contenta em sobreviver fisicamente, pelo consumo de nutrientes. Somos seres de cultura que não têm apenas fome de pão, mas também de prestígio social. A satisfação de se sentir aprovado e admirado é um item indispensável para o equilíbrio emocional de todos nós.
3. A moral do prazer
Passemos, agora, à moral do prazer, o outro coadjuvante no enredo imaginário do mercado e do consumo. Esse tópico é, sem dúvida, uma criação inédita da cultura atual. A moral do prazer é o maior trunfo do imaginário consumista. Por meio dela, a ideia do consumismo ganha um curioso semblante de plausibilidade. Vejamos de que maneira.
Toda cultura, para permanecer viva, deve abrir canais de satisfação a seus participantes. Satisfação é o estado físico-mental alcançado ao levarmos a bom termo nossas intenções. As formas pelas quais nos “sentimos satisfeitos” são variadas, mas um dos propósitos fundamentais e constantes da existência humana é obter prazer e evitar dor. Os prazeres, por seu turno, são formas de satisfação que se exprimem de diversas maneiras. Podemos sentir prazer em realizar “ações cívicas”, em experimentar emoções sentimentais voluptuosas ou agradáveis, em fruir emoções estético-religiosas, em gozar com sensações corporais de bem-estar e de êxtase etc. Esses e outros modos de satisfação prazerosa são componentes indispensáveis ao funcionamento da cultura e à formação de identidades pessoais.
Cada cultura, no entanto, permite a realização de certas condutas e interdita outras. Uma cultura na qual tudo fosse igualmente possível não seria “uma cultura”. Cultura é delimitação de possibilidades e impossibilidades. No convívio humano existem sempre comportamentos que são incentivados e aprovados e outros desestimulados e condenados. Em nossa época, a grande inovação em matéria de condutas é a busca do ideal de prazer corporal ou do prazer das sensações. Hoje procuramos os prazeres sensoriais como há dois ou três séculos perseguíamos os prazeres sentimentais do romantismo e da vida familiar, os prazeres do reconhecimento pela operosidade e pela honestidade do trabalho, os prazeres da admiração pelos grandes feitos políticos e militares, os prazeres da alma no exercício das virtudes religiosas etc.
Duas observações são, contudo, necessárias, antes de prosseguir. Em primeiro lugar, afirmar que, atualmente, elegemos o prazer sensorial como um ideal nem significa dizer que antes não o usufruíssemos nem que hoje tenhamos aberto mão dos antigos ideais de prazer cívico, sentimental, religioso etc. Agora, como anteriormente, continuamos a buscar realizações sentimentais e satisfações sensoriais. O que mudou foi o valor que passamos a atribuir às sensações físicas prazerosas na constituição das subjetividades. Esse valor foi enormemente inflacionado e veio a se tornar um ponto de apoio privilegiado na constituição das identidades pessoais.
A importância que a boa forma física, a boa saúde, o gozo com drogas ou com sexo tinham na formação psicológico-moral dos sujeitos era, até bem pouco tempo, comedida. No reinado da clássica moralidade burguesa, ninguém era particularmente admirado por ser capaz de se manter belo, jovem ou saudável além do que o correr do tempo permitia. Do mesmo modo, a liberdade sexual que hoje usufruímos era quase impensável há três ou quatro décadas, assim como eram impensáveis a extensão e a intensidade que o consumo de drogas psicoativas veio a ter. O que definia a qualidade moral e o apreço social de uma pessoa era a vida sentimental rica, a excelência na vida pública, a integridade religiosa, as qualidades artísticas ou científicas etc. Os prazeres físicos do corpo eram apenas a matéria bruta que devia ser modelada para dar lugar aos ideais de perfeição moral, intelectual, espiritual ou emocional etc.
Em segundo lugar, ao falarmos de culto às sensações prazerosas, estamos diagnosticando um estado de coisas, e não desaprovando, de forma puritana, tais aspirações. A atitude moralista que se refere à “busca do prazer” como um “pecado secular” me parece equivocada. Essa atitude insinua que o prazer físico é, por si, condenável e que os indivíduos hoje vivem em um eterno festim de comida, sexo e droga. A meu ver, além de imprópria, essa imagem é, principalmente, falsa. Ela é imprópria porque, se os indivíduos decidirem que deverão viver para os prazeres físicos, e isso não vier a destruir os compromissos com o Bem comum, não vejo nenhum bom motivo para que se os desaprove; é falsa porque simplesmente não é verdade que a maioria dos praticantes da moral do prazer sensorial se comporte como o moralismo conservador e pequeno-burguês fantasia que ela se comporta. Por tudo que podemos constatar, o ideal do prazer físico continua sendo um “ideal”, ou seja, algo que se almeja e dificilmente se alcança.
Assim, o problema da felicidade das sensações não reside nos pretensos excessos sensuais de seus partidários – afirmação que ninguém vê ou prova –, mas nas contradições que ela produz. Isto é, esse ideal promete o que não dá e dificulta a participação e o compromisso do sujeito com os objetivos do Bem comum. Essas são as razões pelas quais podemos criticar, do ponto de vista ético, a nova moral do prazer, e não por fantasias despropositadas como as que atribuem aos indivíduos excessos sensuais inexistentes.
Feita a ressalva, voltemos ao ponto central: a relação do ideal do prazer com o imaginário consumista. A moral contemporânea do prazer, como a nova moral do trabalho, dá origem à demanda por objetos descartáveis. Uma diferença, no entanto, separa as duas. No registro do trabalho, os objetos são desejados porque compõem a aparência social do turista ou do desenraizado “vencedor”. Pelo fato de serem portáteis e intercambiáveis, eles se tornaram instrumentos cômodos de exibição do sucesso profissional e social.
Na moral do prazer sensorial, a função dos objetos é outra. O prazer das sensações se baseia fundamentalmente nas disposições físicas do corpo para ser estimulado. Diferentemente do prazer sentimental, que pode durar na ausência dos estímulos sensório-motores, o prazer sensorial depende do estímulo físico imediato e da presença do objeto fonte da estimulação.
A única maneira de fazer o prazer físico durar é prolongar a excitação. Nesse caso, entretanto, o sujeito esbarra no limiar de excitabilidade biológica: se o estímulo for forte e durar demasiadamente, dará lugar à dor; se for fraco, ao desinteresse. Resta, então, ao sujeito recorrer aos objetos como fonte de reestimulação permanente do corpo.
É nesse ponto que o consumo entra no script da felicidade das sensações. O sujeito, para escapar da enfermidade do prazer físico, passa a depender, cada vez mais, da diversidade e da constância dos objetos para ter prazer. Como sem objetos não há prazer e como um mesmo objeto esgota rapidamente sua capacidade de despertar a excitação sensorial, é preciso ter sempre à mão algo com que gozar. Além disso, esse algo deve ser permanentemente substituído, para que o hábito não enfraqueça a intensidade do estímulo e elimine o gozo. Por esse motivo, o ciclo de consumo dos objetos se tornou interminável. Além de procurar objetos próprios à excitação dos sentidos relacionais, ou seja, os cinco sentidos, os sujeitos procuram manter em alta intensidade o gozo sexual, o frisson das experiências motoras violentas e o êxtase sensorial neurofisiologicamente induzido por drogas psicoativas etc.
Os objetos são cada vez mais solicitados a superar os limites da excitação física do corpo. E, graças a isso, começaram a assumir um semblante que nunca tiveram, qual seja, o de objetos consumíveis. A metamorfose ocorreu por dois principais fatores. Primeiro porque é mais fácil imaginar o consumo de coisas que experimentamos sensorialmente do que de coisas que, apenas indireta e secundariamente, excitam nossas sensações. Pensar que consumimos imagens visuais excitantes ou drogas psicoativas é mais verossímil do que pensar que consumimos relógios, móveis, roupas ou automóveis. Segundo porque o impulso para comprar objetos, de fato, se fortaleceu à medida que nos tornamos mais dependentes deles para ter prazer. A insaciabilidade por comprar se acentuou porque o ideal de prazer hegemônico fez do objeto a via real da satisfação pessoal.
Como se vê, o imaginário do mercado e do consumo não se sustentaria sem que contribuíssemos ativamente para sua perpetuação. São nossos ideais de felicidade que nos empurram para a aquisição permanente de objetos que, ao ser adquiridos, já portam o signo da obsolescência. O tipo de satisfação ao qual aspiramos pede uma renovação incessante das fontes de estimulação sensorial. Os objetos são os meios que encontramos para alcançar os fins que desejamos.
 4. Sociedade, classes e ideais
Não saberia responder com segurança à indagação de vocês sobre a apropriação diferenciada da ideologia do consumo pelas diferentes classes sociais. Acho, no entanto, que a atitude consumista não depende do nível de renda. É uma atitude diante da vida, e, por conseguinte, diante dos objetos que se pode possuir. No Brasil, a maioria tem uma renda pessoal ou familiar desprezível, mas, mesmo assim, se comporta como se tivesse uma renda alta, quando se trata de usar objetos com coisas descartáveis.
Não consumir significa perceber os objetos como coisas que devem durar, que devem significar algo mais que a satisfação imediata de necessidades passageiras. Significa adotar diante do mundo uma atitude de cuidado. Significa estar consciente de que a sociedade ou o planeta não são um depósito infindável de recursos que podemos saquear, sem respeito ou preocupação com o que virá depois de nós. Por esse aspecto, não vejo grandes diferenças entre os pobres e os ricos. Os mais poderosos e influentes, pela persuasão ou dissuasão, terminam por impor a quase todos seus ideais de sucesso econômico, apreço social e satisfação psicológico-moral.
Não penso que o fundamental na moral do consumo seja a posse de objetos por meio de compra. É entendível que, hoje em dia, com o progresso tecnológico, as crianças, por exemplo, disponham de mais brinquedos e meios de lazer do que dispunham antes. O problema não está na quantidade de coisas que podemos ter, nem mesmo na quantidade de coisas que podemos acumular. A questão é a atitude irresponsável para com o patrimônio material e moral da sociedade em que vivemos. Ter poucos objetos e tratá-los como os que possuem muitas coisas e as tratam de modo “consumista” resulta na mesma consequência ética: tudo que existe é para ser devorado e jogado fora, pouco importa o efeito desse gesto perdulário.
No início do capitalismo industrial, por exemplo, os indivíduos compravam muitas coisas, se considerarmos o montante de riquezas disponíveis e o desenvolvimento técnico da produção industrial. Se vocês observarem com atenção os costumes das famílias burguesas no século XIX, verão que as casas eram apinhadas de objetos de decoração, brinquedos de criança, sem contar os infinitos adereços do vestuário masculino e feminino. Mas nada disso impedia os sujeitos de pensarem que o que possuíam devia durar. Nada disso impedia os sujeitos de viverem não apenas para si, mas para as futuras gerações de filhos e netos. Nada disso impedia que os burgueses mantivessem vivos ideais de progresso científico, de dignidade do trabalho, de honra familiar, de crença na história, de sentimento de responsabilidade para com a nação etc. Bem entendido, não quero, com isso, idealizar o modo de vida burguês oitocentista. Sei bem que muita coisa disso tudo foi construída em cima de preconceitos sexuais, raciais, religiosos, de classe social ou outros. O principal, entretanto, é o compromisso com o Bem comum, com algo que transcenda nossas vidas passageiras e o fugaz prazer de nossos corpos.
A atitude consumista moderna é dissoluta desses ideais. Essa é sua maior nocividade. Ela rompe o fio da tradição e nada põe no lugar. É uma cultura do imediato, do descompromisso consigo, com o outro e com o devir de todos.
5. Resistências e alternativas
Entretanto, nenhuma construção cultural, por persuasiva que seja, é monolítica. A ideologia do mercado e do consumo não é exceção. Todo poder desperta resistências, como disse Michel Foucault. As resistências suscitadas pelo imaginário do mercado são de duas ordens. A primeira é a resistência pela fraqueza dos excessos; a segunda, pela força da criação de alternativas às ideias dominantes. Como exemplo da primeira, cito os vários distúrbios psicológicos derivados do modo de viver atual. A pressão pela boa forma, pela saúde e pela longevidade vem produzindo, em escala crescente, uma série de sintomas hipocondríacos, transtornos da imagem corporal e síndromes de dependência química. Além disso, o estilo de vida competitivo, a insegurança nos postos de trabalhos e a ansiedade pelo sucesso econômico vêm gerando um rol de sintomas típicos do estresse físico e mental: insônia e dores musculares crônicas, desânimo, depressões mitigadas, síndromes de pânico e fobias sociais etc.
Os indivíduos, com maior ou menor clareza, sabem que o preço pago para ser “vencedor” é extorsivo. Muitos começam a buscar refúgio em práticas corporais, de natureza leiga ou espiritual, que os afastem dos ideais de satisfação que dominam o imaginário do mercado e do consumo. Mesmo sem perceber, esses sujeitos criam focos de contestação ao modo de vida hegemônico pelo simples fato de redefinirem seus ideais de felicidade. Aos poucos, os sinais sociais de superioridade de classe deixam de ter apelo para uma parcela significativa de pessoas para as quais as experiências pessoais de sofrimento acabaram produzindo um relativo distanciamento da moral dominante.
Portanto, se nos perguntarmos quais as perspectivas para as pessoas na sociedade de mercado, diria que são muitas, mas que todas convergem para duas saídas principais: 1) continuar a perpetuar um modo de vida que me parece pobre, por estreitar os horizontes da ação humana em uma só direção, qual seja, a do sucesso econômico, do cuidado obsessivo com o próprio prazer e da indiferença em relação ao mundo; 2) voltar-se para o outro, construir uma sociedade na qual todos tenham direito ao mínimo necessário à satisfação das necessidades elementares, para que, então, possamos ser, de fato, livres para criar tantas formas de sermos felizes quantas possamos imaginar.
Como exemplo de resistência pela força da criatividade, cito o surgimento das preocupações ecológicas e o ressurgimento de preocupação política na modalidade da responsabilidade social. O movimento ecológico vem mostrando quão predatória é a prática do consumismo compulsivo e indiscriminado. O argumento da dilapidação dos recursos naturais do planeta vem conquistando adeptos, que veem no consumismo a inconsequência dos que não conseguem pensar no futuro das novas gerações. Esse movimento, embora incipiente, e muitas vezes cooptado pelos poderosos, vem se afirmando como algo digno de respeito, o que não acontecia há duas ou três décadas. Uma grande quantidade de pessoas, sobretudo as mais jovens, se sente atraída e entusiasmada por profissões que lidam com o cuidado ambiental, e isso é um indício importante de mudanças nas mentalidades coletivas.
No que tange à política de responsabilidade social, é impressionante observar o número de pessoas que vêm se dedicando a trabalhos do chamado terceiro setor. São pessoas com visões de mundo, trajetórias de vida e origens de classe bastante diferentes, mas que encontram nos ideais de justiça e respeito pelo outro um objetivo que merece ser perseguido. Todas elas acreditam que o estilo individualista de preocupação exclusiva com o próprio corpo e o sucesso social não basta para dar sentido à vida. O número de participantes nesse tipo de atividade social cresceu de forma impressionante no Brasil dos últimos 20 anos e torna-se uma opção também para os jovens. Os efeitos dessa nova maneira de pensar ainda são, por enquanto, tímidos, mas tudo leva a crer que estamos diante de uma mudança de hábitos de vida na qual os ideais do Bem comum voltaram a ter o respeito que merecem.
Mas vocês me perguntam como acelerar as mudanças? Obviamente não há receitas. Primeiro porque não acredito em mudanças pensadas por um só. Mudança é uma questão de prática, de experimentação de muitos ou de todos. Segundo porque os próprios horizontes da mudança precisam ser rediscutidos dia a dia. Uma coisa, contudo, me parece importante realçar. Toda mudança, para ser estável, duradoura e produtiva, tem de ser contínua e lenta. As grandes transformações históricas que conhecemos, e que se deram de forma brusca, em meio a banhos de sangue, em geral retrocederam ao que temos de pior. Portanto, a paciência e a persistência são as melhores armas para as mudanças responsáveis e humanamente frutíferas. Ora, o que a sociedade de consumo vem justamente minando por baixo é a confiança que temos na história e em nosso valor como agentes de transformação social.
O grande exercício e o grande desafio que enfrentamos é o de continuar acreditando em um mundo melhor para nós e para as gerações futuras. Sei que pode parecer duro ter que suportar regimes econômicos exploradores e concentradores de riquezas sem pensar em tomadas de poder pela violência. Mas, ao olharmos a história, veremos que as aquisições sólidas que fizemos, em matéria de progresso no convívio social, foram todas construídas com tempo a paciência. Foi assim que mudamos os valores familiares, religiosos, políticos, econômicos, sentimentais, artísticos, morais etc. Não vejo outra saída, exceto recobrarmos a confiança em nosso poder de transformação, como criadores que somos. Repito, no entanto, que para isso é preciso recuar da posição na qual fomos postos, qual seja, a de indivíduos exclusivamente voltados para o próprio umbigo. A mudança, portanto, exige que pensemos que o que todos fazemos no dia-a-dia, em qualquer atividade profissional ou cultural, é importante. O que cada um de nós faz ou diz importa, e importa muito! O mundo se faz de pequenos gestos cotidianos e das grandes crenças que os sustentam.
 1. Nota do editor: Este texto foi editado pelo autor a partir da transcrição de gravação de uma conferência por ele proferida no âmbito do curso Juventude, Cultura e Cidadania, organizado pela Unesco (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura), em parceria com o ISER (Instituto de Estudos da Religião). Foram também incorporadas ao texto algumas das respostas do autor a perguntas formuladas pelos jovens que participaram do curso. Texto também publicado em Regina NOVAES e Paulo NABNUCHI, Juventude e Sociedade: trabalho, educação, cultura e participação, São Paulo, ed. Fundação Perseu Abramo/Instituto Cidadania, p. 75-88, e gentilmente cedido para publicação em Vida Pastoral tanto pelo autor como por parte da editora.
2. De agora em diante, evitarei colocar aspas nos termos consumir, consumo, consumismo e consumidor para não sobrecarregar o texto e cansar o leitor. Fique entendido, portanto, que, ao empregar tais palavras, não estarei concordando com seu sentido corrente, mas procurando criticá-lo.
3. Ao utilizar a expressão “prazeres físicos” não estou sendo redundante. Os prazeres corporais são físicos e mentais. Mas, enquanto os prazeres físicos se limitam ao corpo, os prazeres sentimentais podem ser projetados em outros objetos ou sujeitos do mundo ambiente. Especifico, ainda, que o limite entre o físico e o mental é arbitrário, e depende do ângulo de observação e do objetivo pragmático da investigação. Uma investigação neurofisiológica, por exemplo, tenderá a dar relevo aos aspectos físicos dos sentimentos, como uma investigação psicológica ou cultural tenderá a enfatizar a dimensão mental dos mesmos eventos.
 Jurandir Freire Costa*
* Formado em medicina, livre-docente em medicina social e psicanalista por profissão. Professor do Instituto de Medicina Social da UERJ. Autor de vários livros e artigos científicos.

terça-feira, 20 de maio de 2014

Teologia e literatura (afinidades e segredos compartilhados)


Por Maria Clara Bingemer
Há uma afinidade constitutiva e uma irmandade ancestral entre teologia e literatura. Graças à espiritualidade, ambas decorrem da inspiração. Atraindo-se como dois polos relacionais, ambas as disciplinas fazem o ser humano mais humano e a vida mais bela e digna de ser vivida. 
Parábola 
É muito difícil esconder o amor
A poesia sopra onde quer
O poeta no meio da revolução
Para, aponta uma mulher branca
E diz alguma coisa sobre o Grande enigma
Os sábios sonham
Que estão mudando Deus de lugar.
(Murilo Mendes) 
O vento sopra onde quer, você ouve o barulho, mas não sabe de onde vem nem para onde vai. Assim é com todo aquele que nasceu do Espírito (Jo 3,8).
            Atrevo-me a escrever este texto sobre teologia e literatura com tremor e temor, mas com amor. Conhecedora razoável e amante ardente de literatura e poesia, crente com firmeza que a espiritualidade e a teologia têm parentesco próximo com o espírito que inspira os poetas e os escritores, começo tentando situar os termos.
            Literatura. O que é a literatura e qual é a melhor maneira de defini-la? A resposta não é óbvia, em absoluto, porquanto o termo pode ser usado em muitos sentidos diferentes. Pode significar qualquer coisa escrita em verso ou em prosa. Pode significar unicamente aquelas obras que se revestem de certo mérito. Ou pode referir-se à mera verborragia: “Tudo o mais é literatura”. Para os nossos propósitos, será preferível começar por defini-la de um modo tão amplo e neutro quanto possível, simplesmente como uma arte verbal; isto é, a literatura pertence, tradicionalmente, ao domínio das artes, em contraste com as ciências ou o conhecimento prático. Seu meio de expressão é a palavra, em contraste com os sinais visuais da pintura e da escultura ou com os sons musicais.
            Poesia vem do grego poíesis, que significa “ação de fazer algo”. Poesia, portanto, é práxis, apesar de ser a mais gratuita das práxis. Entre as suas inúmeras definições, o Aurélio e o Houaiss nos fornecem uma que interessa de perto a nossa temática: entusiasmo criador, inspiração.
            Espiritualidade vem de espírito, definido como a parte incorpórea, inteligente ou sensível do ser humano; o pensamento; a mente. Espiritual seria então o incorpóreo, o imaterial, sintonizado com o mistério, o místico, o sobrenatural.
            Teologia, por sua vez, vem do grego theología, “ciência dos deuses”. Pode ser o estudo das questões referentes ao conhecimento da divindade – de seus atributos e relações com o mundo e com os seres humanos – e à verdade religiosa. Em segundo lugar, pode significar igualmente o estudo racional dos textos sagrados, dos dogmas e das tradições do cristianismo. Pode ser ainda um tratado ou compêndio sobre as verdades da fé; ou o conjunto de conhecimentos relativos aos dogmas de fé ou que têm implicações com o pensar teológico, ministrados em cursos ou nas respectivas faculdades. A teologia é linguagem segunda, posterior a duas outras: a da revelação e a da fé. Sistematiza duas palavras a ela anteriores: a que Deus mesmo falou, rompendo seu silêncio eterno, e a que o ser humano fala, respondendo à Palavra de Deus, pronunciada no meio da história, rompendo o silêncio do tempo e do espaço.
1. Teologia e espiritualidade: separação e união
            A separação entre teologia e espiritualidade tem sua origem no divórcio ocorrido a partir do século XVI, de consequências nefastas tanto para a espiritualidade, que se viu reduzida em consistência e vigor, como para a teologia, que perdeu em movimento, beleza e flexibilidade, tornando-se um corpo doutrinal puramente explicativo e dedutivo (SOBRINO, 1985, p. 60). Uma teologia, enfim, que poderia pensar e falar sistematicamente sobre Deus, mas talvez, pelo menos em muitos casos, não deixava que Deus mesmo falasse.
            O momento atual redescobre, no interior da reflexão teológica, o direito de cidadania da espiritualidade cristã, a qual não é simplesmente vulgarização teológica, mas fonte rica e consistente de ensinamento novo e irrepetível, sopro do Espírito na história, que permite à teologia de hoje dizer novas palavras (VON BALTHASAR, 1974, p. 142).
            Em virtude disso, a teologia pode dialogar com a literatura e a poesia e descobrir com ambas uma irmandade ancestral, pois, graças à espiritualidade, ambas decorrem da inspiração.
2. Afinidades interdisciplinares entre teologia e literatura
            Acreditamos que há uma afinidade constitutiva entre teologia e literatura. Por isso, passamos, em seguida, a levantar alguns elementos que, a nosso ver, podem construir elementos de ligação e afinidade entre teologia e literatura.
- A inspiração: na origem tanto da literatura quanto da teologia está o fenômeno da inspiração. Da inspiração nos dizem a fisiologia e a Bíblia que tem a ver com o ar em nossos pulmões. Esse ar, sem o qual não se vive, diz a Bíblia que é como o próprio Espírito de Deus, o qual leva e traz a vida, sem se saber de onde vem nem para onde vai (cf. Jo 3,1ss). Sob a força da inspiração, os profetas disseram com boca humana as palavras divinas, os hagiógrafos escreveram o que Deus desejava que escrevessem. É o mesmo Espírito que enche de inspiração o poeta, para que passeie pelas vias da beleza e diga o que vê e o que sente em versos e palavras. Inspirada, igualmente, é a profecia do profeta, sendo o Espírito que o possui e, por vezes, o derruba o mesmo que simultaneamente o exalta e enche de entusiasmo. Inspirada, por sua vez, é a poesia do poeta, a qual seduz e arrebata.
- A palavra: quando dizemos que o meio de expressão literário é a palavra, ultrapassamos o significado etimológico de literatura, que deriva do latim littera – “letra” – e parece referir-se, portanto, de modo primordial, à palavra escrita ou impressa. Com efeito, muitas civilizações, desde a grega antiga à escandinava, francesa e inglesa, produziram importantes tradições orais. Inclusive extensos poemas narrativos como a Ilíada e a Odisseia, de Homero, as sagas islandesas e o Beowulf anglo-saxônico foram, presumivelmente, cantados ou entoados por rapsodos e bardos profissionais, séculos antes de terem sido escritos. Para que se possa abranger essas e outras obras verbais, é útil considerar a literatura uma arte verbal, lato sensu, deixando em aberto a questão sobre se as palavras são escritas ou faladas.
            Por sua vez, a teologia encontra seu nascedouro e sua base na palavra. Palavra que se crê pronunciada por Deus e ouvida pelo ser humano na história, levando este mesmo ser humano, segundo o teólogo alemão Karl Rahner, a ser definido como um ouvinte da palavra (RAHNER, 1989, p. 37-59). E é igualmente palavra escrita pelos hagiógrafos ou escritores sacros, que recolhem aquelas tradições orais que permanecem por muito tempo sustentando a identidade do povo de Deus e, finalmente, as registram por escrito. Palavra declarada canônica pela Igreja, que seleciona entre aquilo que foi escrito o que autenticamente pode encontrar sua fonte na inspiração divina e na inerrância concedida como graça ao ser humano e declara essa palavra normativa para tudo e por nada normatizada.
            Muito especialmente a teologia das três religiões monoteístas – não em vão ou à toa chamadas religiões do Livro – não é pensável ou inteligível sem a Escritura, que no judaísmo é o sinal concreto e sensível da presença de Deus no meio do povo, no Alcorão é o próprio Verbo feito livro e no cristianismo é o texto sagrado que narra a história das amorosas relações de Deus com esse povo.
3. A arte de narrar e imitar a vida
            A literatura é sempre mais definida hoje como arte verbal. Em que sentido específico a literatura é uma arte? Talvez a maneira mais antiga e mais venerável de descrever a literatura como arte seja considerá-la uma forma de imitação. Isso define a literatura em relação à vida, encarando-a como um meio de reproduzir ou recriar em palavras as experiências da vida, tal como a pintura reproduz ou recria certas figuras ou cenas da vida em contornos e cores. Poderíamos dizer que a tragédia Édipo, de Sófocles, “imita” ou recria as lutas íntimas de um homem soberbo e poderoso que, lentamente, foi forçado a reconhecer e render-se à terrível verdade de que era, involuntariamente, culpado de parricídio e de incestuoso casamento com a própria mãe.
            Se tentarmos avaliar essa interpretação da literatura, teremos de reconhecer que ela toca em pelo menos dois importantes pontos. Considerada em seu valor aparente, sugere que a literatura imita ou reflete a vida; em outras palavras, a temática da literatura consiste nas múltiplas experiências dos seres humanos, em suas vivências. Ninguém negaria que isso é verdade.
            Mas a dificuldade está em que, ao defini-la dessa maneira, não dizemos grande coisa acerca da literatura, dado que não levamos em conta o que acontece à sua temática – que poderíamos chamar, na realidade, de sua matéria-prima – quando ela faz parte de um poema, peça teatral ou romance (RICOEUR, 1996). O segundo e importante ponto sugerido pela teoria da imitação é que vida está sendo imitada no sentido de ser reinterpretada e recriada. Nesse caso, a ênfase principal parece recair sobre o modo como a vida é imitada – que tipo de simulação ou de figuração será escolhido ou que espécie de espelho será usado para refletir as experiências humanas. Essa concepção põe-nos mais perto de um dos aspectos essenciais da literatura, a saber, que a matéria-prima é remodelada e até transformada na obra literária.
            Por sua vez, a Bíblia, fonte da revelação e nascedouro da teologia, é tudo, menos um manual de piedade. Trata-se do Livro da Vida por excelência. Paul Ricoeur nos diz algo sobre isso ao refletir sobre a nomeação de Deus (o objeto central da teologia) nos textos bíblicos. A nomeação de Deus sempre acontece no seio de um pressuposto que é o seguinte: nomear Deus é realizar o que já teve lugar nos textos que o pressuposto de minha escuta tem proferido (ibid.).
1) Significará isso que eu coloco os textos acima da vida? A experiência religiosa não é a primeira? O pressuposto não significa absolutamente que não exista “experiência” religiosa. Todas essas experiências são alguns dos sinônimos do que chamamos fé e, portanto, têm algo a dizer à teologia. Assim, a fé é um ato que não se deixa reduzir a nenhuma palavra, a nenhuma escritura. Esse ato representa o limite de toda hermenêutica porque ele é a origem de toda interpretação (RICOEUR, 1977, p. 15-54).
            O pressuposto, portanto, da teologia, que é reflexão sobre a experiência de fé, não é que tudo é linguagem, e sim que é numa linguagem que a experiência religiosa (no sentido cognitivo, prático ou emocional) se articula. Mais precisamente: o que é pressuposto é que a fé, enquanto experiência vivida, é instruída (no sentido de formada, esclarecida, educada) no interior de um conjunto de textos escritos que a pregação cristã traz de volta à palavra viva (RICOEUR, 1996). Esse pressuposto da textualidade da fé bíblica (bíblia quer dizer livro) distingue essa fé de qualquer outra. Em certo sentido, pois, os textos precedem a vida (ibid.). Eu posso nomear Deus na minha fé porque os textos da Escritura já o nomearam antes de mim.
            Frequentemente se afirma que, quando a palavra viva é entregue às “marcas externas”, que são as letras, os sinais escritos, a comunicação fica irremediavelmente amputada: perdeu-se alguma coisa que dependia da voz, do rosto, da comunidade de situação dos interlocutores. Não é falso. Pelo contrário, é tão verdadeiro, que a reconversão da Escritura em palavra viva tende a recriar uma relação não idêntica, mas análoga à relação dialogal de comunicação. A reconversão, porém, recria a situação precisamente para além da etapa escriturística de comunicação e com características próprias que dependem dessa situação pós-textual da pregação.
            O que a apologia unilateral do diálogo desconhece – insiste Ricoeur – é a extraordinária promoção que acontece no discurso quando ele passa da palavra para a escritura. Libertando-se da presença corporal do leitor, o texto se liberta também do seu autor, quer dizer: liberta-se, ao mesmo tempo, da intenção que o texto parece exprimir, da psicologia do ser humano que fica por trás da obra, da compreensão que esse ou essa tem de si mesmo/a e da sua situação, da sua relação de autor com seu primeiro público destinatário original do texto. Essa tríplice independência do texto em relação ao seu autor, ao seu contexto e ao seu primeiro destinatário explica que os textos estejam abertos a inúmeras recontextualizações pela escuta e pela leitura, como réplica à descontextualização contida em potência no ato mesmo de escrever (ibid.).
            Um texto – dirá ainda Ricoeur – é, em primeiro lugar, um elo numa corrente interpretativa: em princípio uma experiência da vida é levada à linguagem, transforma-se em discurso; depois o discurso se diferencia em palavra e escritura, com os privilégios e vantagens que já foram ditos; a escritura, por sua vez, é restituída à palavra viva por meio dos diversos atos do discurso que reatualizam o texto. A leitura e a pregação são essas reatualizações da escritura em palavra. Um texto é, desse ponto de vista, como uma partitura musical que pode ser executada (alguns críticos, reagindo contra os excessos do texto-em-si, chegam até a afirmar que é o “leitor-no-texto” quem completa o sentido, por exemplo, preenchendo suas lacunas, decidindo sobre suas ambiguidades ou até endireitando a sua ordem narrativa ou argumentativa) (RICOEUR, 1977).
Conclusão: teologia, literatura e antropologia
            Na teologia, a antropologia ocupa um lugar central, não apenas porque é feita por seres humanos e para seres humanos, mas também porque a humanidade pode iluminar e esclarecer o caminho e a compreensão da revelação de Deus. Se Deus se revela aos seres humanos, ele o faz por meio do humano, e a natureza humana de Jesus, que é também reveladora do ser de Deus, é prova disso.
            O inegável antropocentrismo da literatura – que inventa e narra histórias humanas ou de personagens outros que falam com palavras humanas – religa-se, então, ao antropocentrismo da teologia.
            E ambas, literatura e teologia, na arte de escrever imitando a vida para transformá-la, encontram sua fonte na inspiração que vem de mais além, cujo segredo é progressivamente desvendado aos seres humanos que se dispõem a tratar mais intimamente com o mistério desta vida doada gratuitamente pelo Criador a suas criaturas.
            Não é à toa, portanto, que a área da interface entre teologia e literatura é uma das que mais crescem na pesquisa hoje. Atraindo-se como dois polos relacionais, ambas as disciplinas fazem o ser humano mais humano e a vida mais bela e digna de ser vivida.
Bibliografia
RAHNER, K. O ouvinte da Palavra. In: ______. Curso fundamental da fé. São Paulo: Paulus, 1989.
RICOEUR, P. Entre filosofia e teologia II: nomear Deus. In: ______. Leituras 3: nas fronteiras da filosofia. São Paulo: Loyola, 1996.
______. Herméneutique de l’idée de Révélation. In: ______. La Révélation. Bruxelles: Publications des Facultés Universitaires Saint-Louis, 1977.
SOBRINO, J. Espiritualidade e teologia. In: ______. Liberación con Espíritu. Santander: Sal Terrae, 1985.
VON BALTHASAR, H. U. Teologia y espiritualidad. Selecciones de Teologia, Barcelona, v. 13, abr.-jun. 1974
Fonte: http://vidapastoral.com.br/artigos/temas-teologicos/teologia-e-literatura-afinidades-e-segredos-compartilhados/